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Um conto de Vic Vieira Ramires

de: Ísis Indigo <[email protected]>

data: 26 de maio de 2016 23:13

assunto: Bathus #07: Curvas batimétricas e outros afetos

Preciso de uma caneca nova. A antiga - um modelo arredondado de vidro azul simulando uma poção de mana - encontrou seu fim quando escapuliu dos meus dedos e se espatifou no chão da cozinha enquanto eu tentava enxotar uma abelha. Nesses últimos dias tenho usado uma caneca branca de cinquenta anos da Eletrobrás que eu resgatei do fundo do armário e veio parar aqui não lembro de qual parente flutuante. Sei que é pirraça dos meus neurônios, mas o café não tem o mesmo gosto.

Em meus ouvidos durante essa semana inteira, tenho repetido The Wanderer, de Jana Winderen. Uma composição dos sons de fitoplânctons e zooplânctons das águas atlânticas do Pólo Norte ao Equador gravada com hidrofones, que me acalma e me ajuda a concentrar na leitura de artigos. O termo plâncton vem do adjetivo grego planktos (πλαγκτός), wanderer, que podemos traduzir como algo/alguém que perambula. Criaturas vagabundas de caminho errante, como os planetas, do grego planítis (πλανήτης), que receberam esse nome porque o pessoal desde o segundo milênio antes de Cristo achava que os pontinhos luminosos que se moviam no firmamento eram estrelas inquietas, errantes.

Passei a olhar para o céu à noite e imaginar plânctons espaciais comendo luz e filtrando nutrientes cósmicos.

Era manhã cedo de segunda-feira quando Agni me encontrou ainda de pijamas chorando no sofá da sala.

Ela tinha acabado de voltar de uma corrida, uma visão sempre deslumbrante, sua camiseta grudada no top com o suor brilhando sobre a pele, seus cabelos crespos amarrados no topo da cabeça e o Fitbit Surge abóbora disputando o centro de atenção com o Adidas verde-água. Em dois segundos, ela estava ajoelhada na minha frente, com meu rosto entre suas mãos, enxugando as lágrimas e perguntando o que tinha acontecido. Eu tentei explicar sobre a garrafa branca de 42 Below que alguém da Matilha (nosso grupo de amigos que costumava morar junto - é uma longa história que conto noutra newsletter) deve ter esquecido da festa de ontem, e como eu deveria ter sido capaz de me livrar da vodka sem maiores problemas, mas os dois dedos de bebida restantes visíveis dentro da garrafa me sugaram para um buraco negro de memórias pré-sobriedade e eu tive um ataque de pânico e “não precisa se justificar”, ela me acalmou.

Agni pegou a garrafa, andou até a área de serviço e arremessou a 42 Below pela janela. Eu só ouvi o barulho do vidro se espatifando contra a parede de concreto do prédio vizinho, que está com a construção interditada, e os cachorros da vizinhança largarem a latir numa reação em cadeia.

“Cê podia ter só esvaziado a garrafa na pia”, comentei fungando quando ela voltou triunfante e Agni deu de ombros dizendo que assim ela exorcizava os demônios do apartamento.

A gente vai precisar quebrar a louça toda, pensei. E desatei a rir sozinha até ela me apertar num abraço melecado de suor dizendo que eu precisava de transferência de calor humano (ou um incentivo para tomarmos banho juntas) e me inundar de conforto com um sorriso iluminado.

Eu me senti em expansão, como se aquele conforto dentro do meu peito fosse um sentido novo.

Vocês leram aquele artigo da Rose Eveleth sobre como mulheres praticam bodyhacking há tempos (tendo o DIU como exemplo mais forte) e não recebem crédito por isso? É de cair em perspectiva quando lemos sobre minúsculos ímãs inseridos na ponta dos dedos como se fossem grande coisa (o que eles são, na verdade). Ímãs estão entre meus materiais favoritos. Esses implantes - neodímio 52 são os mais comuns - podem parecer banais em termos de funcionalidade, mas adicionam um novo sentido à nossa percepção, como a habilidade de sentir campos magnéticos e interagir com objetos que seriam inertes à nossa atenção. A espanhola Moon Ribas falou num TEDx que se percebeu ciborgue depois de sentir na pele um terremoto à distância (através de um sensor que envia uma vibração ao braço sempre que um terremoto é detectado no planeta). Eu só posso imaginar como nosso senso de si, dos limites do nosso corpo e da nossa identidade devem ser alterados quando estamos em conexão com os movimentos sísmicos da geologia de um planeta inteiro. Titânicos, mas não invencíveis. Vulneráveis, acredito. Abertos à imprevisibilidade, simpáticos a seus tremores e completamente seguros de sua resistência.

Foi assim que me percebi na presença de Agni quando ela me acolheu depois que eu escapei do meu pai aos 18 anos. E na última segunda-feira, com o episódio da garrafa de vodka.